Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano IV Número 50 - Fevereiro 2013

Crônica - Roniwalter Jatobá

Arte de Paulo Canabarro
Sampa, 459 anos

De aldeamento indígena em 25 de janeiro de 1554, São Paulo chegou aos 459 anos na condição de maior metrópole da América do Sul.

Todas as cidades do mundo comemoram seus aniversários. É uma data aceita oficialmente como sendo o dia em que se iniciou a cidade, a data de fundação. Todavia, essas datas são meramente simbólicas. Acredito que não possuem um significado maior no total processo histórico. Os Campos de Piratininga, nome pelo qual era conhecida a região hoje ocupada pela cidade de São Paulo, já eram habitados pelos primeiros brasileiros, os índios. Os chamados guaianazes e tupiniquins.

-- Quem inventou essa data de 25 de janeiro foram os padres e os brancos europeus – um amigo comentou outro dia.

Tem razão. A história sempre foi contada pelos vencedores. Por isso, tenho um sonho antigo. Trata-se da preparação de um livro, onde seriam reunidos os relatos dos que vieram de fora, com a sua inicial impressão da metrópole. Centenas de migrantes em torno de um projeto único: a revelação da primeira vez que viram São Paulo.

Uma vez perguntei a dois operários da construção civil se lembravam da chegada em São Paulo. O mais novo, gaiato, deu uma risada:

-- Cheguei dormindo no ônibus e não me lembro de nada.

O segundo, mais velho, recordava tudo. Qual a hora, o dia, o mês e a roupa que usava. Como num filme recordou minuciosamente a condução para chegar à casa de um parente que o acolheria, no bairro da Brasilândia, o movimento estranho de tantos carros nas ruas, a primeira noite maldormida.

-- O sol da tarde era mais vermelho, as luzes das lâmpadas mais brancas, o coração parecia pequeno de tanto medo – anotou em sua memória.

O poeta Arnaldo Xavier (1948-2004) deixou escritas suas recordações: era fim de outubro, 1969. Vista ao longe da rodovia Anhanguera, a cidade estava encoberta por uma neblina reluzente e nervosa, a garoa? As silhuetas compostas pelos prédios configuravam São Paulo, como a boca de um gigante, cujos dentes ameaçavam morder rubras nuvens dispersas ante os primeiros e tímidos raios de “um sol de quase dezembro”.

-- Lá estava São Paulo, gigante deitado sobre o planalto de Piratininga, molhando os pés enfumaçados ora em Cananéia, ora em Itanhaém, ora em Ilhabela – ele lembra. -- Diante daquele primeiro olhar, a enorme boca foi pouco a pouco se traduzindo em ruas, avenidas, pontes e viadutos. Ali estava, flácido e sujo, o rio Tietê, expondo as fraturas de seu destino de locomotiva e de promessa de dias melhores.

Sempre recordo a primeira vez que vi São Paulo. Era Carnaval de 1970. Domingo. Chovia. A antiga rodoviária, na área central, coloriu os olhos. Depois, o trem no Brás. O Tietê. As estações que passavam e, ao lado, fábricas e moradias. Mais adiante, o fascínio pelos arredores de São Miguel, o bairro crescendo em volta da Nitroquímica. O ônibus urbano que me deixa numa travessa da antiga São Paulo-Rio.

A casa na travessa da Rua Tenente Délia, o sofá marrom tomando toda a metade da miúda sala. Uma cortina verde separando a sala dos mundos dos quartos pequenos. A cozinha apertada, o fogão pequeno. Sim, tudo tão novo, tão diferente. Nos dias seguintes, a busca do emprego de fábrica em fábrica. Muitas cidades numa só – multicidades. Zona Leste: Itaim Paulista, São Miguel, Ermelino, Penha, Tatuapé.

Depois, fui desvendando os labirintos de São Paulo, da Capela do Socorro à Lapa, da Vila Maria aos Jardins. Escrevi livros, criei filhos e plantei árvores. São, portanto, mais de quatro décadas de vida em comum com a metrópole. Enfim, um casamento que deu certo.