Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano IV Número 50 - Fevereiro 2013

Editorial


Fevereiro TUDA!

Assim como a boa-venturança traz grandes expectativas, as grandes expectativas podem trazer profundas decepções. Seguindo a linha mezzo-mórbido das recentes edições, TUDA, que já celebrou o nascimento, já celebrou a morte, já celebrou o nascimento e a morte, agora celebra tudo o mais in between, e discorre sobre o tema "entre a vida e a morte", o chamado limbo, purgatório, ou simplesmente aquele estado de (in)consciência onde (assumimos que) a luta entre a vida e a morte é travada - o que pode não ser verdade, e só quem um dia passou por isso e sobreviveu é capaz de relatar por quais sombrios e recessos caminhos a mente percorre, e se, eventualmente, deixa-se esse estado por esforço ou osmose.

Além dos já conhecidos pyndahýbicos, deste e de outros mundos, esta TUDA, levíssima, (re)lembra a partida de Arnaldo Xavier - antes tardo do que nunco (sic) - em 26/01, e parabeniza os poetas Aristides Klafke & Eduardo Miranda pelo aniversário & poesia.

E como sempre, desnecessário dizer, TUDA traz muita coisa boa, e novidades também. Confiram na Dívida Interna.

QG de TUDA
Sem querer soar datada ou engajada, tampouco reacionária, anti-capitalista ou et cetaras, TUDA ilustra uma passagem entre Paddy McGovern e seu amigo Mr. Banker, baseada em fatos reais. Mr. Banker há muito tempo frequenta um cassino, Mercado Financeiro, onde aposta o dinheiro que não é dele, mas que lhe fora confiado sob o fio de sua barba. Mr. Banker está acostumado a ganhar e a acomodar a féria em seu bolso privado. Numa noite, porém, sua ventura o abandona, e Mr. Banker perde o dinheiro que não tem... aquele, que não era dele. Inconformado, tenta recuperar a perda e acaba perdendo mais e mais. Na hora de sair e pagar a conta, Mr. Banker diz não poder pagar, e chama seu amigo Paddy McGovern para dar um jeito na situação. McGovern prontamente paga a dívida de Mr. Banker, que caminha tranquilo pela porta da frente (e eventualmente entrar no casino ao lado), enquanto Paddy McGovern, quebrado, passa a extorquir Zé Povinho, indefeso subalterno que não tem outra opção além de se submeter aos ditames de McGovern.

Soa injusto, não? Pois é...

É isso aí companheiros, ficção à parte, lá vamos nós, na suja LabUTA do dia a dia, descarada e deslavada, a luta do cidadão comum contra o nepotismo deslavado do poderio financeiro, que continua a tirar vidas inocentes com suas armas de destruição em massa - as verdadeiras: hospitais sem infraestrutura que acomodam profissionais sobrecarregados devido a cortes irreais nos quadros de pessoal; bandidagem comemorando o corte de pessoal na policia, que continua a morrer em campo por falta de cobertura; as taxas surreais, indiscriminadas, extorsivas e abusivas; e tudo isso encoberto pela manipulação da engrenagem do Estado em favor de propaganda financeira. E pasmem, isso tudo no Primeiro Mundo, pois no Segundo ou no Terceiro nem espanta mais, tal anestesiamento, e no Quarto não há mais o que explorar, é o bagaço já apodrecido nas latas de lixo do que restou de humanidade.

Até quando, seria uma pergunta plausível...

Asyno Eduardo Miranda
o (auto-proclamado) editor
deste porto aimdassymseguro da jlha do Eire
oje, segº dia do segº mez
d este Anno Domini de MMXIII

Dívida Interna

Photo by Lisa Kristine

Editor
Eduardo Miranda

Capa
José Geraldo de Barros Martins

Digitação
Eduardo Miranda

Revisão
dos autores

Participam desta edição:
Aldo Votto, Aristides Klafke, Arnaldo Xavier, Carolyn Crawford, Cesar Cruz, Dino Valls, Dorival Fontana, Eduardo Miranda, Hilda Hilst, José Geraldo de Barros Martins, José Miranda Filho, Kamille Corry, Kris Carlson, Lisa Kristine, Marina Alexiou, Mr. Mead, Muchanu, Odd Nerdrum, Paulo Canabarro, Pedro Du Bois, Plínio de Aguiar, Ronald Augusto, Roniwalter Jatobá, Santiago de Novais, Smokey Robinson, Souzalopes, Veronika Beck, Victor Bauer, Vinícius de Moraes e William Ronald.

E-mail
tuda.papel.eletronico@gmail.com

Poesia - Arnaldo Xavier

Gerbera Daisy, by Kris Carlson


subsenhor     Ainda bem que todos os mecânicos que conheço          Que
encontro em minhas fabricanções     Observam: PERDEU O PARAFUSO!


[ in Lud-Lud, Casa Pyndahýba Editora, São Paulo, 1998 ]

Poesia - Souzalopes

Foto-manipulação de Eduardo Miranda

Manifesto do Partido Comunista
em cordel
Anônimo de Souza

(...)

 4 – Posição dos comunistas diante dos diferentes partidos de oposição

O comunismo combate
Por todo trabalhador
Seja em França ou Alemanha,
Pólo Norte ou Equador.
O comunismo é o futuro
Do mundo que despertou.

O comunismo se orgulha:
Fala tudo, nunca mente.
Na luta vai derrubar
Essa ordem existente.
O proletário só tem
A perder suas correntes.
Por isso fica esse grito:
-Se ajunte, minha gente.

- FIM -

Poesia - Aristides Klafke


Primeiro De Fevereiro de 2013 Não é Um Dia Como Outro

Minha cabeça Minha paciência
Meu auto retrato com orelha cheia de brinco
Todos juntos na direita
Um forma de folha de maconha
Outro âncora convencional
O terceiro caveira típica pirata
Um dragão gracioso de prata
Uma folha fininha de madeira
Não repare, prepare-se para o baque

Minha nossa! Aos 60
A gente nem pensa em etiqueta
No calendário anota a data do exame de prostrata
Usa óleo de cânfora nos tornozelos
Volta a ler volumes nunca terminados de Proust

Não canso de repetir meu mantra de toda manhã
Graças a Deus não mais quebro a cabeça
Com epítetos truísmos e centelhas
Minha vida é perfeita se perfeito podemos chamar
O simples ato de respirar

Sou fiel ao ar que boto para dentro
Sou fiel ao ar que sai de dentro de mim
Como um gato mato o tempo aos pouquinhos
Mas primeiro brinco com ele, o torturo com ternura
Enquanto eclodem ao meu lado
Miasmas e mais miasmas

Adoro root rock
Rock de hoje nem tanto
Clássica todas elas
Mas se escolho qual delas
Fico com Bach
Bach me desfaz
Quando o ouço
Socobro
Sou silêncio

Meu poeta de cabeceira não revelo
Um luxo que reservo para o próximo evento
O tempo me fascina como uma folha
Duas palavras que pronuncio a cada momento
Folha e Tempo
De livro
De poesia

Poesia - Santiago de Novais

Foto enviada pelo autor

π

brisa fresca
flor com beija flor dentro
em gotas

morder galáxia
o rabo do cometa comer
em πingos

não πrecisa ser rude πrecisa ser burro não πrecisa tanto não ler com os olhos de chuva roxa πoemas
te daria meu πão para me dar seu sofrimento te daria este pois mais agora não πosso dar não morra

não πie apenas morra

Poesia - Dorival Fontana

Hung by a thread I

Milagre

A nudez está nos olhos.
A vergonha está nos tabus.
Deus ao alcance da fé.
Sejamos livres, puros, legítimos.
O amor e o ódio por um fio.
Um gesto simples transforma.
Uma palavra brota terra.
Toda mudança, escolha incerta.
Toda escolha, mudança certa.
Transformemos:
Guerra em sexo em massa,
Ódio em amor fortuito.
E fodam-se todos os corruptos,
Todos os mal-humorados,
Todos os covardes
E todos os outros ant(i)-vida.

Poesia - Marina Alexiou

Imagem enviada pela autora

Pássaros voam num céu solitário e ameaçador
Espectador da distância e do silêncio que envolve
A edificação do tempo
Nobre ainda ao olhar...
O som das esperanças sustenta os risos que um dia viram
Tão plácidos azuis a conviver com tão calmas águas,
Rituais sonoros e bênçãos angélicas.
Rememora-se nos desenhos formados em suas pedras
A aliança que reverbera nas pupilas dos visitantes.
Quem dera a riqueza das almas que lá já estiveram
Pudesse trazer de volta o ímpeto voluntarioso
Daqueles que não calaram as suas vozes
No âmago escuro dos claustros.
Coral silente. Fogo sagrado. Dias obscurecidos pela cortina da história...
Toca a música do dia. O seu espectro forma novas luzes em antigas construções
A passarela continua lá a receber o peso dos infortúnios e anseios
Das máscaras alegres que sorriem, tendo como contraface
As contrariedades e dissabores da necessidade.
E ondas sonoras que trazem em seu balanço uma promessa sempre inusitada,
Embora tantas vezes revista
Junto à espera. Do novo acorde. Do novo movimento. Do ritmo ainda não compartilhado pela
alma do Arquiteto.
De um mundo essencialmente luminoso e irregular
Em sua ainda jovem aparência.
Capturado nos passos humanos que se aninham
Protegidos na redoma do ballet e no respeito às eternas marcações
Da coreografia que impera a construir a beleza da vida.

Poesia - Aldo Votto

Painting by Kamille Corry.

Garota de Programa

beijo lábil
lábio débil
voz dócil
abraço frágil
riso contráctil

lascívia ignóbil
acerto contábil
procura táctil
látex inconsútil
cuidado inútil

disfunção erétil

Crônica - Roniwalter Jatobá

Arte de Paulo Canabarro
Sampa, 459 anos

De aldeamento indígena em 25 de janeiro de 1554, São Paulo chegou aos 459 anos na condição de maior metrópole da América do Sul.

Todas as cidades do mundo comemoram seus aniversários. É uma data aceita oficialmente como sendo o dia em que se iniciou a cidade, a data de fundação. Todavia, essas datas são meramente simbólicas. Acredito que não possuem um significado maior no total processo histórico. Os Campos de Piratininga, nome pelo qual era conhecida a região hoje ocupada pela cidade de São Paulo, já eram habitados pelos primeiros brasileiros, os índios. Os chamados guaianazes e tupiniquins.

-- Quem inventou essa data de 25 de janeiro foram os padres e os brancos europeus – um amigo comentou outro dia.

Tem razão. A história sempre foi contada pelos vencedores. Por isso, tenho um sonho antigo. Trata-se da preparação de um livro, onde seriam reunidos os relatos dos que vieram de fora, com a sua inicial impressão da metrópole. Centenas de migrantes em torno de um projeto único: a revelação da primeira vez que viram São Paulo.

Uma vez perguntei a dois operários da construção civil se lembravam da chegada em São Paulo. O mais novo, gaiato, deu uma risada:

-- Cheguei dormindo no ônibus e não me lembro de nada.

O segundo, mais velho, recordava tudo. Qual a hora, o dia, o mês e a roupa que usava. Como num filme recordou minuciosamente a condução para chegar à casa de um parente que o acolheria, no bairro da Brasilândia, o movimento estranho de tantos carros nas ruas, a primeira noite maldormida.

-- O sol da tarde era mais vermelho, as luzes das lâmpadas mais brancas, o coração parecia pequeno de tanto medo – anotou em sua memória.

O poeta Arnaldo Xavier (1948-2004) deixou escritas suas recordações: era fim de outubro, 1969. Vista ao longe da rodovia Anhanguera, a cidade estava encoberta por uma neblina reluzente e nervosa, a garoa? As silhuetas compostas pelos prédios configuravam São Paulo, como a boca de um gigante, cujos dentes ameaçavam morder rubras nuvens dispersas ante os primeiros e tímidos raios de “um sol de quase dezembro”.

-- Lá estava São Paulo, gigante deitado sobre o planalto de Piratininga, molhando os pés enfumaçados ora em Cananéia, ora em Itanhaém, ora em Ilhabela – ele lembra. -- Diante daquele primeiro olhar, a enorme boca foi pouco a pouco se traduzindo em ruas, avenidas, pontes e viadutos. Ali estava, flácido e sujo, o rio Tietê, expondo as fraturas de seu destino de locomotiva e de promessa de dias melhores.

Sempre recordo a primeira vez que vi São Paulo. Era Carnaval de 1970. Domingo. Chovia. A antiga rodoviária, na área central, coloriu os olhos. Depois, o trem no Brás. O Tietê. As estações que passavam e, ao lado, fábricas e moradias. Mais adiante, o fascínio pelos arredores de São Miguel, o bairro crescendo em volta da Nitroquímica. O ônibus urbano que me deixa numa travessa da antiga São Paulo-Rio.

A casa na travessa da Rua Tenente Délia, o sofá marrom tomando toda a metade da miúda sala. Uma cortina verde separando a sala dos mundos dos quartos pequenos. A cozinha apertada, o fogão pequeno. Sim, tudo tão novo, tão diferente. Nos dias seguintes, a busca do emprego de fábrica em fábrica. Muitas cidades numa só – multicidades. Zona Leste: Itaim Paulista, São Miguel, Ermelino, Penha, Tatuapé.

Depois, fui desvendando os labirintos de São Paulo, da Capela do Socorro à Lapa, da Vila Maria aos Jardins. Escrevi livros, criei filhos e plantei árvores. São, portanto, mais de quatro décadas de vida em comum com a metrópole. Enfim, um casamento que deu certo.

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Ilustração de José Geraldo de Barros Martins
baseada na obra “Le Déjeuner Sur l'Herbe” de Pablo Picasso


A Velha Fazenda

Após tanto tempo Josias Germano retornava à antiga fazenda Santa Judith, que pertencera a seu avô, no município de Tabijú (situado no meio do caminho entre Araraquara e Jaú), no interior paulista... aliás sobre o nome da cidade, uma curiosidade: pesquisando na internétis, o nosso protagonista descobriu que uma provável origem do nome Trabiju foi a expressão “trés bijoux” utilizada por engenheiros ferroviários franceses ao avistar o local em questão... Josias sabia que aquilo era coisa de seu avô, o velho Josias, que gostava de inventar e(hi)stórias, uma vez que as ferrovias paulistas foram construídas por engenheiros ingleses e não franceses, além do mais Trabijú não tinha nada de especial para despertar tais exclamações...

Depois de passar pela entrada, a mesma desde a década de setenta (sob um rústico pórtico a inscrição “Fazenda Santa Judith” em uma placa azul com as letras brancas), o nosso protagonista percebeu que nada mudara: a longa descida entre os algodoais até o curral, depois virar á direita, e seguir até a sede...

A construção estava idêntica, tal qual as lembranças de sua infância: as duas redes, colocadas nas extremidades da ampla varanda, que rodeada por jardineiras baixas, cheias de espinheiras, pintadas em cinza com tarjas brancas... o mesmo chão de lajotas, os mesmos pôsteres feitos de cartazes de exposições de Picasso, as mesmas poltronas de couro, os mesmos lustres da sala construídos com rodas de carroça... o mesmo piano-bar, no qual um piano de cauda repousava sobre um piso de azulejos hidráulicos pretos e brancos, tal qual um tabuleiro de xadrez, ao lado de um balcão de bar de madeira escura cujo fundo apresentava uma vasta variedades de bebidas extremamente requintadas...

O despertador tocou, o nosso protagonista e sua esposa Marília Olávia estavam passando férias na Anadaluzia, mais precisamente em Alcalá de Los Gazules, e mais uma vez ele sonhara que estava de volta a fazenda do seu avô... era um sonho recorrente... ele ficou alguns momentos recordando o que sonhara e achou engraçado que no sonho aparecesse o piano-bar... no resto a fazenda sonhada era bem semelhante a de suas lembranças, com exceção aquele piano-bar que jamais existira...

Após um desayuno composto por embutidos gazules (com destaque especial para o jamón belota), gazpacho andaluz e suco de pomelo, o casal protagonista foi dar um passeio pelo vilarejo de casas brancas, pelas ruínas do castelo e das muralhas muçulmanas e depois pelas cercanias repletas de oliveiras e mais oliveiras... durante o passeio Josias Germano perguntava a si-mesmo qual era o motivo daquele sonho? Por que sempre a fazenda de seu avô?

Ao retornar ao vilarejo, uma pausa em um boteco local para umas taças de jerez... ao saborear aquele vinho com gosto de concha marinha, Josias reparou que na parede do bar havia uma reprodução de “Le déjeuner sur l'herbe” uma releitura que Pablo Picasso fizera da obra homônima de Edouard Manet... lembrou-se então que na fazenda “Santa Judith” havia um poster idêntico (seu avô fora um pioneiro em emoldurar pôsters, que costumava trazer de suas andanças européias)

Foi então que o nosso amigo percebeu que a fazenda é um símbolo da infância feliz, do aconchego familiar em meio a um ambiente rústico porém culturalmente requintado; e que em todo lugar com tais características, como era o caso de Alcalá de Los Gazules, estaria sempre na fazenda de seu avô...

− Um brinde a Trabiju!!! falou em voz alta.

Marília Olávia arregalou os seus olhos mouros espantada olhando assustada para sua cara metade e antes que ela dissesse algo Josias emendou:

- Calma que, no hotel eu explico...

Crônica - Cesar Cruz

Manhattan Taxi, oil on canvas by Victor Bauer.
O Taxista do Belenzinho

Céu preto. Fiz sinal pro táxi. Oxalá!, quase eu gritei de alegria quando ele parou, porque eu já estava tomando aqueles pingões grossos na careca. Pulei pra dentro do carro a tempo de vê-los (os pingões) desabarem todos lá do céu, de uma só vez.

— Segue pra onde? — foi a pergunta do taxista, que eu mais intuí do que propriamente ouvi, por conta do barulhão da chuva na lataria.

— Metrô Belém! — gritei — É o mais perto, né?

Ele não respondeu, porque acho que também não ouviu. Se nem eu com 42 anos estava conseguindo ouvir minha própria voz, que dirá ele, que parecia bem velhinho.

Seguimos pelas ruas do bairro do Belenzinho, já empoçadas àquela altura. Fui observando pela janela os transeuntes com seus guarda-chuvas se aglomerando nas calçadas, duas moças aos gritinhos que, com cadernos na cabeça, buscavam refúgio sob uma marquise, e os camelôs correndo pra desmontar tudo.

Enquanto meus pensamentos vagavam, pelos meus ouvidos parecia ir entrando uma espécie de reza sonolenta, numa vozinha abafada pelo barulho da chuva; certamente uma missa na rádio do táxi. Espiei no painel e o rádio estava desligado. Não era rádio coisa nenhuma! Era o velhinho taxista, que recitava aquela ladainha e me espiava pelo retrovisor, esperando que eu desse algum tipo de sinal. Apurei os ouvidos para ver se entendia alguma coisa do que ele dizia.

Lá fora já não se enxergava um palmo à frente do carro. E os trovões rachando sobre nossas cabeças. Enquanto o táxi avançava passo lento, fui pescando alguns fragmentos das histórias que contava o homem, em seu uníssono monocórdio e de baixo volume. Para fazê-lo feliz, mesmo sem conseguir ouvir quase nada, eu ia vez por outra dizendo “Oh, é verdade!”, ou “Poxa, que coisa, hein?”.

Algumas passagens eu conseguia compreender, como a do pai dele, que na época da Segunda Guerra dirigira bondes ali pelo bairro, foi motorneiro; da mãe, que trabalhou a vida toda na extinta firma Moinhos Santista, na Marquês de Abrantes; do irmão, dois anos mais velho que ele, que quando eles eram meninos de calças curtas foi atropelado por um bonde e morreu na sua frente.

— Não era o bonde do seu pai, né? — perguntei de um súbito, repentinamente chocado.

— Não, com a graça de Deus... — ele disse.

E o trânsito ia fechado diante de nós, e o que deveria ser uma corrida de 5 minutos já levava quinze. Não havia o que fazer. Impossível saltar na chuvarada a procurar uma estação que eu nem sabia onde ficava.

E na minha distração já ia avançado um relato sobre elevadores, e pelo que consegui escutar, desde mil novecentos e sessenta e alguma coisa ele não entrava em um, porque sei lá quem morreu num “despencamento horroroso” de um elevador no centro da cidade, e do corpo só sobrou a cabeça em cima dos sapatos...

E tome história!

Na calçada uma confusão enorme causada pela tempestade que arrastou tudo, e dentro do táxi uma profusão de causos que se sucediam loucamente. Agora ele contava o drama de um câncer que tinha vencido “com a força do trabalho”, porque o homem não pode ficar ocioso nem na hora da doença e...

Trovão! Cabrum!

— Porque a minha senhora, que...

Catabrum! Chuaaaá!

O final dessa frase se misturou a todos aqueles barulhos, e me sucedeu uma aflição, porque desconfiei que houvesse acontecido alguma coisa com a senhora dele.

— O quê? — perguntei; mas ele não parava nem por Deus de recitar suas histórias; nem pra ouvir os outros, nem pra esfregar a flanela no para-brisa que ia espalhando o embaçado do vidro. Por fim eu fiquei sem saber se o complemento da frase seria:

“Porque a minha senhora, que hoje é acamada,...”; ou:
“Porque a minha senhora, que não gosta que eu conte histórias,...”; talvez:
“Porque a minha senhora, que acha essas chuvas um perigo,...”;

Ou um terrível:

“Porque a minha senhora, que Deus a tenha,...”.

Sei que àquela altura o táxi já estava encostado no meio fio. Paguei a corrida e chapinhei na enxurrada até a segurança da cobertura da estação, mas ainda a tempo de ouvi-lo enfim se apresentar:

— Luiz Fernando, seu criado!

Conto - José Miranda Filho

São Paulo Airport - photo by Elena Christina

Encontro de Amigos - Parte 15

Aeroporto Internacional Governador André Franco Montoro, Guarulhos, São Paulo, Brasil. Janeiro de 1979. A aeronave da Air France havia pousado, com 15 minutos de atraso.

No momento do chek-in, alguém se aproximou do Doutor Jackson e disse: — Queira me acompanhar, por favor, senhor. Sou o Delegado Pedro Silveira, da Policia Federal.

— Sente-se e se identifique, por favor.

— Sou Jackson Stevenson Alves. Sou advogado, professor universitário, ex-funcionário do Itamarati, ex-embaixador do Brasil em Irlanda. Tenho 70 anos e sou brasileiro, disse Doutor Steveson.

— Qual o motivo de sua vinda ao país? Perguntou-lhe o delegado.

— Doutor, sou um ex-asilado e retorno ao meu país anistiado pela Lei que favoreceu todos os expatriados que deixaram este país acusados de crimes que não cometeram. Particularmente eu que não cometi crime algum e fui acusado de pertencer ao sistema e conspirar contra o regime militar e por isso fui banido de minha pátria. Como nada ficou provado, fui absolvido, e hoje regresso ao meu país, aonde devo exercer o meu direito constitucional de ir e vir, como qualquer cidadão livre.

Sem argumentos legais para contrapor o que acabara de ouvir, o delegado, apenas disse: — Tudo bem, mas o Senhor terá que assinar esta declaração de residência e comprometer-se de não participar de qualquer ação, ato ou movimento político enquanto estiver sob a custódia da justiça brasileira e terá que se apresentar todos os meses à Policia Federal.

— Doutor, segundo a Constituição, sou um cidadão livre, já fui julgado e absolvido das acusações injustamente a mim atribuídas, portanto, tenho o direito como qualquer cidadão de me locomover livremente para qualquer lugar, o dia e a hora que bem entender.

O Delegado, sem maiores rodeios, devolveu-lhe o passaporte, liberou suas bagagens, e desejou-lhe boas vindas.

Dr. Jackson, finalmente dirigiu-se à sua antiga residência na cidade de São Paulo, no Bairro do Itaim. Herança de seus pais.

Permaneceu em São Paulo apenas dois anos, e em 1982 partiu definitivamente para a Irlanda, exilando-se voluntariamente pelo resto da vida, até a sua morte ocorrida em 2005.

Tradução - Eduardo Miranda

Smile, by Muchanu

Meu sorriso é uma tristeza (virada de ponta cabeça)
Smokey Robinson

Se você por acaso me ver por aí sorrindo
Não pense que o meu sorriso é de verdade
Nenhuma expressão poderia dizer
O quanto meu coração está a sofrer
Desde que você partiu essa é minha realidade

Meu sorriso é uma tristeza
Virada de ponta cabeça
Apenas uma tristeza
Virada de ponta cabeça

Mas cada vez que estou sozinho
As lágrimas começam a cair
Lágrimas de desgosto rolam pelo meu rosto
Porque no fundo não estou a sorrir

Meu sorriso é uma tristeza
Virada de ponta cabeça
Apenas uma tristeza
Virada de ponta cabeça

E se por acaso você ver rindo
Saiba que só rio para enganar a multidão
Assim como Pagliacci fez
Eu vou esconder minha tristeza de vez
E para isso, eu vou rir, rir e mentir

Meu sorriso é uma tristeza
Virada de ponta cabeça
Eu posso parecer feliz quando sorrio
Esse é o meu grande desafio
Pois meu sorriso é uma tristeza
Virada de ponta cabeça
Eu posso parecer sempre sorrindo
Mas no fundo estou sentindo
Meu sorriso é apenas mais uma tristeza
Virada de ponta cabeça

My smile is just a frown (Turned upside down)

If you should see me and I'm smiling
Don't think my smile is for real
No expression could explain
How much my heart's in pain
Since you left me here's how I feel

My smile is just a frown
Turned upside down
Just a frown
Turned upside down, yeah

But each time when I'm alone
Teardrops start to fall
My tears erase the life that's on my face
'Cause it's really not a smile at all

My smile is just a frown, yeah
Turned upside down, yeah yeah
Just a frown
Turned upside down

Oh, and if by chance you hear me laughing
I only laugh to fool the crowd
Just like Pagliacci did
I'll keep my sadness hid
And to do this I'll laugh, I'll lie

My smile is just a frown, yeah
Turned upside down
I may look happy when smile
But really all the while
My smile is just a frown, yeah yeah
Turned upside down
I may appear to wear a grin
But really deep within
My smile is just a frown, oh oh
Turned upside down.

Foreign Words - Vinícius de Moraes

The Loneliness of Jonas McGinley
Pen & ink on board - by Mr. Mead
A Birthday Sonnet

Days, hours, months, years; move on
Illusions of life, get matured
Keep it going always divided
In balanced with hope and letdown.

Make the flesh more despicable
Diminish the goods, grow the damages
Overcome the easy talk of adages
And speak out, don't remain unhearble.

Prefer the fortune than the adventure
As the temple whitens and the time goes
And what once were hard no long endure

And I'll tell you my friend, let it go
How great this love is, for the creature
Which sees growing but doesn't grow.

Soneto de Aniversário

Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.

Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.

E eu te direi: amiga minha, esquece....
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.

Releitura - Hilda Hilst

Veronika Beck - In Between

LXII

Que as barcaças do Tempo me devolvam
A primitiva urna de palavras.
Que me devolvam a ti e o teu rosto
Como desde sempre o conheci: pungente
Mas cintilando de vida, renovado
Como se o sol e o rosto caminhassem
Porque vinha de um a luz do outro.

Que me devolvam a noite, o espaço
De me sentir tão vasta e pertencida
Como se as águas e madeiras de todas as barcaças
Se fizessem matéria rediviva, adolescência e mito.

Que eu te devolva a fome do meu primeiro grito.

[ in Amavisse (1989) ]

Ilustração - Odd Nerdrum

"Night Guard - Oil on Canvas by Odd Nerdrum

Odd Nerdrum (8 de Abril de 1944), é um pintor figurativo Norueguês com influências em Rembrandt e Caravaggio, embora a abstração de sua arte conceitual coloque seu trabalho em conflito direto com a arte do tempo.

Ilustração - Dino Valls


Limbus, Oil / Wood, 2009, by Dino Valls

Dino Valls é um pintor espanhol nascido em 1959, em Zaragoza. Desde 1988 ele mora e trabalha em Madrid. À partir de uma paixão de infância para o desenho, Valls é auto-didate na pintura em óleo desde 1975.

Video - Mr. Mead

Ensaio - Ronald Augusto

The Critic, 1978 - William Ronald

Notas Precárias Sobre Fazer, Saber e Julgar

A atividade crítica, como há pouco escreveu o poeta Marcus Fabiano, mantém, sob certos aspectos, estreita analogia com a tarefa do jurado de qualquer prêmio ou concurso literário (advirto que esse comentário se restringe ao campo da literatura, mas pode-se aventar a hipótese de que o problema seria o mesmo se falássemos do ponto de vista de outra atividade artística). Mas num certo momento seus caminhos, o do crítico e o do jurado, se bifurcam.

O jurado, assim como o crítico, a partir de critérios principalmente estéticos (por agora vamos dizer que deveria ser assim) assume a responsabilidade de apontar dentre aquelas obras apresentadas à competição, as mais bem logradas a partir do que é específico dessa linguagem. Já o crítico, seja por seu próprio apetite, seja por dever de ofício, se dobra sobre a produção do presente e do passado e propõe leituras e análises (eu diria que se dispõe a uma interlocução) a propósito das valências compositivas desses exemplares e avalia, principalmente, os seus resultados artísticos, e, secundariamente, as tensões semânticas sugeridas.

Enquanto a decisão não vem a público, jurado e crítico estão seguros. “Deixemo-los lá, os dois, fazendo o seu trabalho de suma importância para continuação do sistema literário”. Tão logo o resultado, seja da análise, seja do julgamento ou da interpretação se torne conhecido, e esse resultado acaba por separar, sempre, os melhores dos piores, seu recorte passa a ser severamente criticado.

A diferença entre o jurado e o crítico é que este dá a ver publicamente não só as obras literárias bem logradas que teve sob seus olhos. O jurado, por sua vez, faz uma crítica indireta, quase apaziguadora de conflitos, pois oferece (por agora vamos aceitar que é assim) ao leitor modelos do que considera um bom ou excelente trabalho literário ou de arte. No caso dos prêmios e concursos, exceto se algum derrotado/excluído não vem a público para lançar dúvidas sobre a decisão do jurado, nem sabemos quem morreu no caminho. O silêncio entre desdenhoso e vaidoso como que deixa tudo em panos quentes e, aparentemente, todos concordam que a justiça foi feita. “Eu? Não, não mandei nenhum original para esse prêmio. Nem sei quem ganhou”.

Assim, o crítico, ao menos dentro das condições do presente, enfrenta e produz alguns problemas, vejamos: (1) se ele escreve a favor de determinado autor – ou seja, diz bem do seu trabalho, livro, poema, etc – não faz bem porque poucos sabem escrever “a favor” (sem tropeçar no compadrio) hoje em dia. De outra parte, essa ideia de “coletivo de escritores” reduz o “a favor” a um vergonhoso estilo laudatório que preserva mais o sujeito que elogia do que o elogiado, pois no momento seguinte o objeto dos confetes lançados terá de retribuir o gesto na mesma moeda. Escrever “a favor” (e as condições momentâneas apontam para isso) é quase sinônimo de relação corruptora.

E (2) se o crítico escreve contra, ele é um filho da puta (com o perdão da expressão, culto leitor) porque esse “coletivo de escritores”, todos eles conectados graças às redes sociais, esse coletivo de ativistas, forma um campo benfazejo onde se prosperou a ideia – inclusive para que ninguém sofra um surto psicótico – de que não existem mais bons nem maus escritores. O que importa é participar; ser um representante desse coletivo.